Desenhos e Pinturas

            Escrever sobre um jovem artista é um verdadeiro exercício de resgate de conceitos e palavras. Escreveu-se tanto nesses nossos caóticos anos 80 sobre a espontaneidade, a irreverência, a vitalidade da nova arte brasileira que pouco se parou para pensar sobre o escrito.

Com a abertura política instaurada pela Nova Velha República, re-inaugurou-se a política da euforia, do ufanismo e do entusiasmo. Catarse ou alienação (palavrinha perigosa!)? Tanta emoção (paixão é mais atual) era um prato cheio para o desbunde neo-expressionista local. Aproveitando a valorização da jovem arte americana e do neo-expressionismo alemão, nosso mercado de arte, aliado aos comentaristas artísticos de plantão, resolveu mostrar o que se fazia de novo, ou melhor, entre os novos, no país. O curioso é que o modelo europeu se tornou um tanto incomodo. Tentaram descobrir algumas raízes expressionistas para a arte brasileira, mas pedir a um jovem de 20 que sinta angústia existencial num país a 40º à sombra, é pedir demais! Partiu-se para a chamada irreverência, mera piadinha, ao lado do Cildo Meireles, Antônio Manoel, Ana Bella Geiger, Antônio Dias e Gerchman dos anos 60/70.

            A década de 80 chega a seu final. A nova geometria pretende colocar pedra sobre pedra. Da expansão à contenção, e, mais uma vez, o sistema de arte procede à degola em massa. Verdadeira dança das cabeças (em todos os sentidos). O que isso tem a ver com o trabalho de Ricardo Cristofaro? Talvez nada, talvez muito. Trata-se, sem qualquer dúvida, de um artista verdadeiramente estreante e não de um sobrevivente dos anos 80. Curiosamente seu trabalho sugere algumas discussões que andaram em baixa nos últimos anos. A visceralidade, a auto-expressão, a gestualidade compulsiva, a exuberância cromática com que nos bombardearam em todos os lugares parecem não estimulá-lo de maneira especial. Por outro lado, há uma indisfarçada afinidade com as pesquisas matéricas de Burri, Fautrier, Tàpies; referências, no mínimo, curiosas em se tratando de um artista de vinte e pouco anos. Trata-se de um artista contido, implosivo, para quem a economia de meios se associa à economia do discurso. Abrindo mão da literatura narrativa da pintura dos anos 80, o artista se concentra num repertório conciso de formas e cores e trabalha com disciplina e método numa investigação sistemática da linguagem plástica. O que mais nos atrai em seu trabalho é o fascínio da linguagem e não a decodificação da narrativa. O prazer da investigação é mola mestra de seu trabalho.

            Talvez seja um tanto precipitado emitir conceitos de valor sobre os atuais trabalhos desse jovem artista, mas o certo é que Ricardo Cristofaro dará continuidade à sua carreira. Novas soluções e novos problemas surgirão nessa trajetória, mas as questões básicas já estão levantadas em seus desenhos e pinturas. Tudo o mais é uma mera questão de tempo e trabalho.

Arlindo Daibert – Apresentação de Exposição Individual na Galeria Paulo Campos Guimarães, Belo Horizonte/ MG, 1986.

Pinturas 

            Ricardo Cristofaro é já um jovem artista iniciado nos compromissos e dificuldades da afirmação de uma carreira artística no Brasil. Expondo regularmente nos últimos dois anos, já podemos ter uma visão retrospectiva mais crítica de sua trajetória. Para nós, que acompanhamos seu processo de formação e aprendizado, fica flagrante a importância de dois grandes orientadores: os artistas Leonino Leão e Marco Túlio Rezende. De ambos Ricardo Cristofaro assimilou a responsabilidade e o compromisso frente à busca de uma linguagem pessoal e um extremo respeito pela investigação plástica dos diferentes materiais expressivos. Não ousaria classificá-lo simplesmente como pintor. Cristofaro pertence àquela categoria de artistas que vão um pouco mais longe na busca de linguagens plásticas. Se seu trabalho atual reflete uma certa “nostalgia da figuração”, que poderia aproximá-lo da produção de um Daniel Senise, o certo é que, intrinsecamente e, essencialmente, sua obra lida com a questão da matéria. Em termos mais radicais, o artista tem um compromisso maior com a criação – em seus mais nuançados níveis de materialização – do que com a representação. Sua obra atual oscila entre duas ricas vertentes: a invenção e a representação. Cabe ao artista uma reflexão profunda sobre sua trajetória, seu compromisso estético e, sobretudo, sobre seu direito ao prazer de criar.

Arlindo Daibert – Apresentação de Exposição Individual na Casa de Papel, Juiz de Fora MG, 1990.

Um Construtor

O trabalho de Ricardo Cristofaro nasce do diálogo entre dois pólos em aparente oposição que provocam a sensibilidade do artista. De uma lado, o empenho construtivo; de outro, o jogo matérico. A proposta é justamente a de conciliá-los na interação resultante do ato criativo; vale dizer, para ele, uma simbiose de lógica e intuição, rigor e poesia
          É uma obra que reivindica a construção como linguagem e, por isso, pode-se dizer que a sua pintura sugeriria a escultura ou o objeto. A questão da tridimensionalidade pulsa em Ricardo Cristofaro. O repertório formal demarca a eleição de determinados espaços geométricos que tendem a se constituir em vocábulos de uma linguagem particular, ao assumirem sua vocação corpórica. Essa possível autonomia do suporte enfatiza o rigor da construção e faz com que a pintura decorra daquilo que o artista chama de “acaso controlado”. Enquanto ela procede da casualidade, o corpo que a recebe advém de um processo de lógica radical.
          Um construtor pinta. Trata-se de um jogo com a matéria sobre o espaço construído que pretenderia esgotar-se me si mesmo. A camada pictórica que reveste a superfície parece querer despertá-la para uma outra emoção, ao visar especialmente uma dimensão acrescida à forma conquistada. Mas a pintura não se vincula a qualquer universo simbólico, apenas se geometriza como epiderme do espaço, uma provocação ótica ao espectador que contempla o recorte rigoroso.
          No entanto a crispação dessa pele resgata a pintura, ao atribuir-lhe igualmente o caráter autônomo de que careceria diante da contundência da forma sobre a qual se assenta. Ao reconhecer a casualidade do jogo matérico e buscar-lhe algum controle, Cristofaro acentua a prevalência construtiva , conquanto ceda a sedução da pintura. É através dela que o artista deseja apreender, com um novo fascínio, o olhar que investiga suas superfícies racionalmente delimitadas. Controlando o acaso, ele contém a pintura no domínio da forma, mas é pintando, afinal, que se revela a procura tanto do volume quanto da matéria. Quer a cor como o espaço.
          O confronto instala-se, assim, no centro de uma obra que eminentemente construtiva, almeja o embate entre construção e emoção. E o desenvolve, com crescente interesse, a partir de um dos núcleos mais ativos da contemporaneidade brasileira, que é a cidade de Juiz de Fora.

Angelo Oswaldo de Araújo Santos – Apresentação de Exposição Individual na Galeria de Arte da UFF, Niterói, 1991.

Sobre a obra tridimensional de Ricardo Cristofaro

Do Prometeu arquetípico, Ricardo Cristofaro herdou um notável cabedal. O do fazedor com o mérito do conhecimento íntimo sobre as estruturas das coisas da Natureza e do mundo objetivo. Talvez isto se deva ao tempo da infância e da adolescência quando, na oficina mecânica de seu pai, deixava-se absorver por silhuetas e detalhes usurpadores do pensamento.

Uma vez sendo encontrado por seu universo de interesse, nunca mais as coisas deixaram de ajudá-lo na interpretação e no entendimento dos universos que o rodeiam, transformando-o em um colecionador de trivialidades e de detalhes sem importância. Do olhar potencializado por múltiplas vontades brotou então a arte de encontrar o que ele não procurava.

E, das sucessivas acumulações perceptivas foram aflorando suas formas “mutiladas”, materializadas a partir de analogias feitas com resíduos da vida mental. A proximidade com qualquer dos “objetos” resultantes não deixa enganos. Trata-se de uma linguagem tridimensional precisa que se explicita através de um espírito eminentemente construtivo. Seus volumes e seus vazios anunciam a conquista de um espaço privilegiado para a estrutura e para a sua ausência já que, segundo o próprio Ricardo, somente o invisível nos comove.

A maturidade vulcânica do seu fazer é um fato. Há minúcia no acabamento do detalhe. O rigor da produção de “corpos” geometrizados emerge e vem resgatar o olhar. Há pessoas que nascem para conduzir carruagens, outras para fazê-las. Penso ser o caso de Ricardo que, além de considerar com carinho as lembranças de saberes artesanais ancestrais, se engaja lucidamente em discussões sobre a forma, sua estrutura, suas possibilidades de volume e relevo.

Ao reler Duchamp por vieses libertários, o artista impressiona-se com a realidade trivial da materialidade cotidiana, reconduzindo o insignificante e o banal a uma dimensão cósmica. É quando sua urgência construtiva aciona estratificações de lembranças, recolhendo fragmentos de imagens e formas que, para o escultor, aparecem disfarçadas de intenção estética em casamentos possíveis entre a madeira e o ferro.

Por outro lado, referendando-se na teoria do não-objeto, Ricardo quer tratar de objetos impregnáveis dos rastros imperceptíveis de todo tipo de ferramenta, considerando formas e materiais escolhidos como palavras de um bom poeta. Um atávico desejo de simplesmente saber mais e mais sobre qualquer coisa e sobre seus misteriosos dispositivos de construção guia o artista na concepção de uma arquitetura diferenciada, interessada em criar novos refúgios para o olhar. Quanto aos títulos de algumas obras, não há dúvidas, eles transformam o refugo dos olhos em inteligência poética e a experiência sinestésica resultante amplia a consciência de quem se aproxima, enxerga e lê.

Marcus Hill – Apresentação de exposição individual Belo Horizonte, setembro de 2002.

No meio da rua, do redemoinho: o mundo em descoberta.

        É desenho? É pintura? É escultura? É instalação? Em arte não dá mais para definir essas fronteiras, “é coisa infantil: não primitiva, mas pura. É descoberta do mundo: é o diabo no meio da rua, do redemoinho”, diz César Brandão, um dos expositores desta mostra que congrega quatro artistas juizforanos. Arte é questionamento. Esta é a leitura primeira desses trabalhos produzidos por artistas representativos do universo regional, não por acaso todos eles participantes do Salão Cataguazes-Usiminas de Artes Visuais – aberto neste mesmo espaço do Museu Chácara Dona Catarina em dezembro de 2004 –, que buscou contemplar artistas com atuação basicamente fora do eixo Rio-São Paulo, o conhecido circuito “Elizabeth-Arden” das artes plásticas nacionais.

          O que parece estar em jogo aqui é um constante interrogar-se sobre o mundo e o fazer artístico. Uma arte em permanente processo de indagação. Uma arte provocativa, que interage com o espectador a cada momento, que busca transformar o espectador em ator, autor, e – quem sabe? – arauto de seus desígnios. Arte participativa. Arte que quebra tabus, preconceitos, suportes. Arte libertária, arte em linha de montagem. Arte que expõe a cada momento o seu fazer, o seu processo de construção. O cotidiano, os objetos do cotidiano descontextualizados e inseridos num espaço novo, em plena autonomia. Os objetos desprovidos de sua função. Os “desobjetos”, os não-objetos encontrados no dia-a-dia de cada um e que passam a objeto de contemplação/interação quando deslocados de seu espaço: fios de linha, madeira, ferro, alumínio, fotos. Objetos instalados no espaço ou mesmo na parede, quando “desativados de sua função objeto”.

          (…) Também a memória afetiva de Ricardo Cristofaro está ligada a oficinas e ao pai, que foi mecânico a vida inteira. Desde cedo, o artista manifestou queda para o desenho e seu destino era de início a arquitetura. Mas acabou voltando-se para as artes gráficas, começando a vida como programador visual. Sempre ligado ao traço, à forma, ao objeto, à sua estrutura formal. Sempre um observador atento dos objetos das oficinas do cotidiano. O que ficou para sempre e de tal forma que hoje os seus trabalhos estruturam-se especificamente em função dos objetos e das novas formas, deles serem contextualizados/descontextualizados, de sua ressignificação em termos de instaurar um novo processo estético. Trabalha assim o artista com a tridimensionalidade de seus objetos, forma de aproximação com a arquitetura, com a utilização do espaço, mesmo quando na parede. Não são esculturas esses objetos, mesmo porque não se apóiam em pedestais: são os objetos em si, em toda a sua autonomia. “Objects trouvés”. Mas não “encontrados ao acaso”, pois aqui o olhar de Cristofaro os procura de forma específica na ronda das ruas, e o artista sabe muito bem o que procura. E já agora não são mais objetos esses objetos: desconectados de sua função, assumem-se como não-objetos. Artefatos, fatos de arte. (…)

Ronaldo Werneck – Apresentação de exposição Coletiva na Fundação Cultural Ormeo Junqueira Botelho, Cataguazes, 2005

Poética errante

Os recentes trabalhos de Ricardo Cristofaro foram produto do acaso. Não deste “acaso que não existe”, mas de outro, fruto do seu convívio com a espontaneidade do mundo: o artista se coloca aberto aos possíveis diálogos que o entorno com ele mantém – e estes não são poucos – e destes tira seus poemas visuais. O acaso, nesta situação, é um “acaso consciente”.

Como um andarilho errante, Ricardo promove uma re-visita aos cacos do cotidiano, colhendo-os movido por critério pouco palpável, flexível – ora, a textura, ora, o material ou a memória afetiva guia sua colheita – e os retrabalha exercitando um raciocínio estendido da assemblage.

Se o assemble promove associações livres que re-situam os materiais num novo contexto, Cristofaro nos entrega seus objetos já significados por sua poética de bricoleur. O resultado é um didático encaminhamento do nosso olhar a novas direções, a novos “perceberes”. Afinal é o que sempre faz o poeta, certo?

Ricardo poetiza quinquilharias e as usa como o outro – aquele que escreve – faz com as palavras: às vezes gastas pelos excessos dos discursos da escrita, as contextualiza sensivelmente para que possamos lê-las como se estivéssemos frente a elas pela primeira vez, e o fazemos arrebatados pelo espanto da novidade óbvia.

É isto que usufruímos nesta exposição: a surpresa de reencontrarmos nossas banalidades redivivas por um novo suspiro de vida, aquele que só a arte pode insuflar. Como Niestzche já havia dito, o poeta errante Cristofaro mostra nos seus trabalhos que “o homem é o grande reinventador de si mesmo”.

Afonso Rodrigues – Apresentação da Exposição Objeto(s) à deriva. CCBM, Juiz de Fora/MG, 2009.